sexta-feira, 6 de novembro de 2009

UM LUGAR NO VERÃO - MEMÓRIA DESCRITIVA



(um lugar no verão)

 

Onde estão hoje a montar o palanque para a Mónica Cintra

Onde  estão hoje a montar o palanque para a Mónica Cintra estavam então sete homens abrigados da torreira do sol. Sete homens à boa vida, sentados na poeira de uma tarde de verão.

E porque eram sete, lembrou-se um de pôr-se a dizer sete e sete e três dezassete e quatro vinte e um e seis vinte e sete, do breviário da tabuada de somar das noites à luz de Petromax, lápis de xisto e ardósia, da alfabetização de adultos na escola primária dos centenários. Enquanto passava uma charrete puxada por um cavalo pigarço com um feitor sentado e um cão atrás, levantando uma nuvem de poeira. E os sete homens sete e sete e três dezassete ficaram a olhar a charrete que desapareceu na poeira que era assim um nevoeiro amarelo, e saíndo  da poeira, uma mulher com uma cântara de água à cabeça entrou para o alpendre de um forno de onde saía um fumo transparente, e cheirava a pinhas queimadas. Depois passou um homem pequeno, de andar delicado, a que chamavam o pisa gatinhos, que disse hoje nem os cães saem à rua, e dirigiu-se para junto do poço caiado de branco e azul onde, de dois caldeirões deixados na calçada, dois cavalos bebiam devagar com as cabeças penduradas.  Quando chegou junto do poço ficou a assobiar aos cavalos, era um assobio continuo e tranquilo a encorajá-los a que continuassem bebendo.

Sete homens à boa vida no verão e na rechina do calor.

Um que tinha os olhos fechados e morria devagarinho, outro que fazia um tresmalho, outro que matava um alemão, outro que via jogar o Patalino, outro que olhava para longe e tentava perceber, outro que estava ali por estar e outro que andava às voltas, muito lentamente, por cima deles.

Era num largo antigo num tempo antigo onde o sol se punha como hoje se põe, por detrás de uma casa grande que tinha um telhado de telha marselha e um cata-vento com um galo amarelo e os pontos cardeais e uma grande chaminé, janelas de  sacada e cantarias e alisares, uma escada de pedra e um lancil à volta, e projectava uma sombra que ia alargando.

Às vezes ouvia-se um violino raspando no silêncio da tarde, um violino às voltas no interior da casa, e quando o violino se soltava ficava um silêncio maior que era o som do violino a calar o silêncio todo. Outras vezes era o arfar de um fole  numa forja ao longe, um fole gargalhando no vento quente, e depois o vento quente enrolava e fazia um espojinho que era um remoínho no dizer deles, na língua que eles falavam e nas palavras que tinham para o dizer.

Sete homens a matar o tempo, de olhos semi-cerrados na soalheira da tarde.

Já ia para duas semanas que nas casas dos sete homens só havia sopas de pão com alhos pisados e coentros e sal porque os sete homens e as mulheres deles estavam à boa vida. As mulheres vestiam os aventais de riscado e procuravam nas gavetas, migavam o pão, cortavam os alhos e os coentros que juntavam ao sal e à água a ferver e os homens esperavam olhando com a barba crescida. Quando os homens iam cortar a barba  ficavam a cheirar a sublimado, as mulheres cheiravam sempre aos cheiros naturais e asseados da lida da casa.

À boa vida, dizia-se então de  quem estava sem trabalho nos campos, estar à boa vida. Estava então à boa vida muita gente que caminhava sem destino nos campos ceifados, respigando, dobrada, no meio do restolho. E como estavam à boa vida e tinham o tempo todo para matar, chegavam cedo na tarde, cheirando ao alhos e aos coentros, para matar o tempo e ao mesmo tempo aproveitar o tempo morto para estarem uns com os outros. Ainda a sombra não  passava de uma nesga sem largura que se visse  nem frescura com esse nome  que convidasse a ficar.

Primeiro ficavam de pé, direitos no lancil e encostados na parede, os pés encolhidos no limite da sombra. Depois, à medida que o sol ia descendo e começava a  esconder-se por detrás da casa grande, ia a sombra descendo e o corpo de cada um deles descendo também,  acompanhando a descida da sombra. O corpo de cada um deles descendo lentamente para a terra quente, com a sombra que descia.

Quando a sombra já era suficiente e dava para ficarem de joelhos flectidos então flectiam os joelhos, as costas escorregando  na  parede caiada, quando a sombra já dava para se sentarem lá se começavam eles a sentar, e quando a sombra ia ficando uma bela e larga sombra, uma sombra que se podia ver, deitavam-se eles logo nela.

Um a morrer devagarinho, outro olhando para longe e tentando perceber, outro no Patalino, outro sentado a fazer um tresmalho, outro na Flandres a matar um alemão, outro sem nada para dizer nem nada em que pensar e outro, o que voava por cima deles, voando por cima deles sendo levado por um bando de oito patos presos à cintura numa cartucheira, quatro patos de cada lado, sendo que quatro de um lado e três do outro quando precisava de curvar.

De vez em quando punham-se a beber a água de uma infusa de barro e a água era fresca e  sabia a terra cozida e deixavam que ela lhes escorresse pelo  peito. Às vezes parava lá um amola-tesouras, outras vezes um almocreve, outras vezes um ourives numa bicicleta, outras vezes uns contrabandistas espanhóis, outras vezes uns saltimbancos com uma cabra amestrada  um trapézio e um macaco empoleirado. Bebiam da infusa e depois iam-se embora.

Também paravam lá grandes rebanhos que seguiam para as feiras de gado do verão e então o largo ficava um grande largo de lã, de lã branca e de lã castanha  com o poço caiado de branco e azul no meio dos rebanhos parados e a beberem dele. Então os pastores apartavam as crias, ordenhavam as ovelhas e faziam sopas de leite. Depois tocavam as gaitas de boca que eram da marca honner e os cães sossegavam, paravam de trabalhar, faziam uma volta e meia enrolada e punham-se a dormir com o focinho escondido.

Quando os sete homens já tinham falado do que tinham a falar e alumiado o que tinham a alumiar e já não tinham mais nada para falar ou que alumiar então punham-se a dizer “basta que sim!” e a abanarem a cabeça, e depois de terem dito “basta que sim!” bastantes vezes, as vezes bastantes, um de cada vez e a abanarem todos a cabeça, a concordar uns com os outros, ficavam a olhar para o chão, calados mas relutantes.

Às vezes o que olhava para longe e tentava perceber punha-se a cantar. Primeiro  cantava baixinho, como se a voz não quisesse cantar, “eu sou devedor à terra/e a terra me está devendo”, sempre aquilo, que era assim uma mágoa antiga, uma queixa velha, funda e desconsolada, mas depois deixava que a alma se fosse  soltando, que a alma  abalasse, que a alma se fosse indo embora atrás da voz que cantava “a terra paga-me em vida/e eu pago à terra em morrendo” e então punha-se a alma dele a ir-se embora a cantar e a entrar na alma dos outros.

O que fazia um tresmalho esse era mais de ouvir, gostava de ouvir cantar o que cantava e às vezes  quando o que cantava soltava a alma lá ia ele fazendo o baixo atrás da alma do que cantava. Continuando ao mesmo tempo a fazer o tresmalho e  estendendo o tresmalho já feito ao longo do lancil. Às vezes também parava para enrolar um cigarro e olhar o tresmalho já feito  estendido no lancil, e o tresmalho já feito, estendido no lancil, ficava logo cheio e  a escabujar com as taínhas e as carpas e os barbos e os bordalos que ele ia apanhar.

O que morria devagarinho mal se apanhava deitado na sombra puxava logo o chapéu para cima dos olhos fechados e dizia agora, se vocês deixarem, vou eu deixar-me morrer devagarinho um bom bocado, e depois de ter morrido um bom bocado devagarinho, levantava-se e espreguiçava-se tanto que ficava com os olhos molhados. Depois enrolava  um cigarro e ia-se embora, se voltasse voltava, já tinha morrido o tempo suficiente, o resto fosse o que esse resto fosse já parecia não ser com ele. Às vezes acompanhava de longe uns contrabandistas espanhóis que nasciam debaixo das pedras e calcorreavam os montados nas  calças de bombazina, as biscaínhas pretas enterradas na cabeça e as grandes sacolas a tiracolo com as meias de vidro e os frasquinhos de perfume tabu e os cortes de fazenda que vendiam pelos montes e à entrada das aldeias. Mal os espanhóis assomavam à guarita lá ia ele  muito saracoteado atrás deles mas era por pouco tempo, que os espanhóis eram lestos como galgos e então quando apareciam os cavalos da Guarda, davam grandes saltos sobre os barrancos e desapareciam logo para o meio dos montados, a meter-se para debaixo das pedras, as biscaínhas eram a última coisa  a desaparecer. Uma vez a Guarda encontrou uma biscaínha preta perdida no meio de um olival mas como não viu debaixo das pedras não podia encontrar, como não encontrou, contrabandista espanhol nenhum, e assim lá partiram os guardas abanando a cabeça, montados nos cavalos resfolgantes cobertos de espuma branca. Quando não estava com os espanhóis, punha-se mais vezes a morrer e  ficava preguiçoso. Ainda um dia havia de ir com eles, até já o tinham desafiado!...não é que mentisse mas inventava muito muito! Dele diziam que não tinha perto nem longe..

O do Patalino assentara praça em Évora, ia ao peão do campo Estrela ver jogar o Lusitano, o Vital  o José Pedro e o Falé, mas o Patalino é que era! haviam de ver o Patalino, uma tarde o Patalino, o Patalino isto o Patalino aquilo, o Patalino para aqui o Patalino para ali e quando se deixava daquilo do Patalino  punha-se a contar da feira de S.João e do Carrossel Oito e  do poço da morte e de um circo com uma certa trapezista e de um que vendia banha da cobra e de uma barraca com uma prostituta, não dizia prostituta mas puta também não dizia e meretriz não saberia dizer, então dizia uma mulher a que um homem se podia chegar, pagando pois! e contava dos burros velhos mortos à marretada, atrás do circo, para dar de comer aos leões, enquanto ao longe se ouvia uma música alegre que depois ia ficando uma música triste, sendo a música a mesma. Ele vira, e contava como aquilo lhe tirara o sono!...

O que andava às voltas por cima dos outros seis era o único que sabia voar. Tinha o bicho carpinteiro,diziam, não parava sossegado e não deixava sossegados os outros com aquilo do voar. E nem era bem aquilo do voar, ainda se fosse! era mais aquilo de, lá no alto, não se ensaiar nada para se pôr a espreitar o que ia pelos quintais. A bisbilhotear os quintais, dando fé de tudo! ainda se não se pusesse também a dar à taramela... não fazia por mal mas aquilo também não se fazia por bem, era mas era uma grande falta de respeito! Mas não voava todo o ano, só voava quando os patos voltavam de emigrar e iam nadar nos pegos mais largos das  ribeiras que aguavam numa serra distante e desaguavam num rio ainda mais  distante, no rio Sado e no mar. Agora andava ele a voar! e metido nos quintais... fazia assim: quando os patos estavam pousados na água ia ele por trás, nadando todo mergulhado só com o nariz de fora, nadando à cão, que é como se diz desse nadar assim todo mergulhado, e no meio dos lismos e dos nenúfares e da hortelã e das tabuas, das rãs e das cobras de água, apanhava os oito patos um a um e prendia-os na cartucheira à volta da cintura, sendo que quatro patos de cada lado. Era muito difícil porque tinha de apanhá-los quase todos ao mesmo tempo, por causa do efeito surpresa. Os oito patos de que precisava. Quando davam por que estavam presos, desatavam os oito patos a bater as asas para se soltarem e lá iam eles todos os oito voando e levando o homem no meio, cheirando aos poejos e à hortelã da ribeira, muito lampeiro, logo a espreitar para os quintais. Quando  queria descer e já não precisava dos patos todos, ia soltando um a um os patos de que ia não precisando e então começava a descer. Às vezes aparecia  um grifo conhecido que roubava ao homem alguns dos patos mas o homem não se importava muito com isso porque aqueles eram patos de que já não precisava e deixava que o grifo os levasse, até lhe convinha! Por causa daquilo dos quintais e de outras bilharetas, dele diziam que quem não tem vergonha todo o mundo é seu...

O que estava a matar o alemão já era muito velho e não era bem à boa vida que estava, era velho demais para estar à boa vida, mas também não sabia a que vida estava... era tão velho tão velho que até fora à guerra de 14, que era onde estava agora mesmo a matar o alemão com uma baioneta. O alemão que o tentara gasear! Havia anos que o matava todas as tardes, quase todas as tardes, e agora com o azedume da idade, matava-o mais vezes ainda. Agora mesmo estava a matá-lo outra vez, enquanto esgaravatava no chão com a bengala. Uma vez trouxe um jornal velho para mostrar os alemães gaseadores mas o que vinha lá era a raínha de Inglaterra num bergantim junto ao um cais com colunas, todo engalanado.

O que estava ali por estar só estava ali por estar  e ficava sentado na ponta da sombra.  Falava  sozinho, calava-se sozinho e ficava calado com o queixo nos joelhos, olhando a onda de calor. Dele sabia-se que fora à inspecção e voltara de lá com a fitinha verde dos adiados pregada no peito com uma segurança. Passaram-se anos e não se passou mais nada, depois esqueceram-no e foi ficando adiado para sempre. Fazia pequenos trabalhos, pagavam-lhe e que guardasse o troco. Às vezes ia fazer um mandado, recebia uma melhadura e voltava a sentar-se na ponta da sombra.  

(Sete e sete e três dezassete, voltou um, eu sou devedor à terra, voltou outro, e continuaram  a cantar e na lenga-lenga dos setes, e aquilo foi ficando uma tal serrazina, uma tal algaraviada, uma tal missa cantada de setes... na onda de calor tudo parecia em contra-luz, e quando se calavam ouvia-se o crepitar do que ressequia. Na casa, o que estivera a tocar violino, podia ver amarinhando na parede, no lusco-fusco da hora da sesta, as silhuetas invertidas dos que passavam no largo, as rodas da charrete do feitor e as patas do cavalos viradas para o ar e o pisa gatinhos de cabeça para baixo e pernas para o ar pisando gatinhos no céu.)

Por vezes também aparecia por lá um milhafre riscando o céu, a desenhar círculos negros no céu esbranquiçado da luz, um milhafre voando aos círculos, muito mais alto e mais pausado do que o homem que voava com os patos, muito mais alto e mais pausado, largos círculos que depois  iam ficando círculos cada vez mais pequenos até que o  milhafre vinha por ali abaixo e desaparecia. Então  as mulheres paravam de caiar as casas ou de tender o pão ou de não saber dos filhos e corriam num alvoroço a meter a criação para dentro dos galinheiros e depois punham-se a gritar antóóó,arméééé,joããã,filiiiip, e cada filho era um grito rasgado e uma vogal aberta esvoaçando estridente por cima da aldeia, até que se ouvia um tiro de caçadeira e as mulheres logo com os filhos vogais abertas nas saias,  era então que voltava  o silêncio, aquele silêncio que era um rumor disperso com um coração escondido, e as mulheres outra vez às voltas com as paredes e com os filhos sentados e com o pão tendido,  tudo outra vez  muito longe e muito sossegado, e o homem que não tinha nada para dizer nem em que pensar e que só estava ali por estar, sentado na ponta da sombra, ficava olhando  para o céu  e para o longe ainda mais calado.

 

(Lá onde estão hoje a montar o palanque para a Mónica Cintra)

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CASIMIRO BRANCO