É tão importante perceber como se transita de uma ditadura para uma democracia como o inverso. Os processos de degradação dos estados liberais, em transição para o autoritarismo, podem ser rápidos e bruscos (como o português, de 1926), ou graduais, nos quais a ditadura se institucionaliza gradualmente a partir de dentro de sistemas que se descrevem como democráticos (como o italiano, em 1922-26, ou o alemão, com Hitler, em 1930-33), nos quais se percebe, como na metáfora de Ingmar Bergman, a serpente dentro do ovo. Mas será que conseguimos mesmo perceber quando, apesar de não se mudar o nome, acaba a democracia e se instala o autoritarismo?
Do nosso lado do mundo, gosta-se de dizer que os novos autoritarismos estão na Rússia, na Venezuela, na China, mas o que emerge das revelações de Assange e de Snowden é que também nós vivemos em sociedades que se dizem democráticas mas que estão sujeitas a condições de vigilância e de controlo totalitários. Os estados (em cooperação com as empresas que gerem a informação) vigiam uma enorme parte dos seus cidadãos, entre sindicalistas, ativistas políticos e religiosos, trabalhadores públicos e privados, jornalistas, estudantes, até ao mais banal facebook em que uma imagem minimamente política possa ter sido postada.
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70 anos depois da libertação de Auschwitz, o fundamento dos regimes em que vivemos é ainda a rejeição radical do fascismo e do racismo? A ilegitimidade de toda a dominação colonial? O reconhecimento de que não há liberdade sem bem-estar, de que não há democracia sem direitos sociais, sem igualdade efetiva entre homens e mulheres, com discriminação legal ou social de minorias étnicas ou de orientação sexual? Não. Já não somos herdeiros de 1945. Desde que Thatcher proclamou que a “sociedade” era “uma invenção marxista”, e que, pelo contrário, nas relações sociais só existem “indivíduos”, começou, apesar de todas as resistências, a des-democratização, a inversão do caminho aberto em 1945. Retomou-se o caminho da desigualdade.
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A história, contudo, não acaba aqui. É que, como se viu, também não acabou quando a Europa inteira achou que Hitler tinha ganho a guerra e que o fascismo era o fim da História.
Manuel Loff
Público