Sustentado pela vasta influência da parentela, fora com efeito levado, sem abalos nem choques, numa ascensão gradual e confortável, até à sua poltrona de damasco vermelho da Relação de Lisboa. Aí se deixara cair com o peso da sua obesidade, e cruzando as mãos sobre o estômago, começara a ruminar regaladamente. Que de modo nenhum se creia que eu queira diminuir com azedume os méritos deste varão obeso: quero somente mostrar a natureza, toda de indolência e de egoísmo, do Desembargador Amado, ocupado em se nutrir com abundância, atento exclusivamente ao jogo das suas funções, assustado se a bexiga, ou o baço, ou o fígado denunciavam alterações, sem ter coragem de se mexer do sofá durante noites inteiras, completamente desinteressado dos homens – e mesmo de Deus.
O nosso imortal José Estêvão, vendo-o um dia entrar numa recepção em casa do chorado duque de Saldanha, exclamou, designando-o com um verso conhecido de Juvenal:
– Aquele ventre que ali vem, é o Amado!
Era com efeito um ventre, que em certos dias da semana punha sonolentamente os óculos, e assinava com a mão papuda, onde os colegas lhe indicavam com o dedo; da sua ciência jurídica, nada direi, para não envergonhar as paredes e os móveis deste quarto onde escrevo; da sua honestidade, sei que a sua grande fortuna e as suas propriedades de Azeitão o tornavam indiferente às tentações do dinheiro: mas condenaria Jesus e absolveria o mau ladrão, se o peitassem com um casal de patos bem gordos ou com um salmão fresco do rio Minho.
Fazia, ao comer a sopa, um glou-glou nojento e repelente, e atirava para o soalho os escarros que merecia na face.
Eça de Queiroz
In 'O Conde de Abranhos'