sábado, 15 de outubro de 2011

NO CENTENÁRIO DE MANUEL DA FONSECA

Ruas da Cidade

Na noite calada e quieta como um grande segredo,

andando ao deus-dará nestas ruas desertas,

saio lá do fundo do meu sonho

e olho ao redor de mim.


Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:

o frio, e os altos prédios fechados,

e as ruas mortas como paisagem de cemitérios.


E a claridade fugidia dos candeeiros cansados,

como pálpebras que se vão fechar.

E o torpor saindo de todas as coisas

e pairando no ar, como um desmaio iminente...


Só eu ainda tenho passos para andar

e uma não sei que ternura

para todos que estão, para lá das paredes

adormecidos e descuidados

à morte que espreita escondida no mistério da noite...


Em que casa e andar estará dormindo

aquela de quem não sei o nome nem a vida,

mas descobri a cor dos cabelos e a melodia do corpo

quando nos cruzamos esta manhã?

Nesse momento,

ou fosse porque chovia sol sobre a algazarra de gestos

das gentes que iam e vinham e se falavam e continuavam

ou porque nos olhássemos de certa maneira que não saberei contar,

mesmo de longe, dissemos com os olhos, um para o outro

— Hoje é um dia de glória!

Mas tão estranho me pareceu

aquele milagre entre dois desconhecidos,

que nem voltei a cabeça para trás...

Agora este desânimo sem nome

de quem traiu um dia inteiro de vida

e teima ir pela noite dentro

à espera nem sabe de quê ...


De tantas horas iguais estou farto!


Mas ao fim e sempre a mesma esperança:

"um dia virá..."

E eu que tenho a vida desarrumada

como se fosse um milionário bêbado,

ergo-me e saio para a rua deslumbrado

e ressuscitado, todos os dias, ao amanhecer.

E vai a coisa tão certa como uma religião,

E vai a coisa tão certa como uma religião,

como se espiassem um louco...

Onde estão ouvidos que entendam as minhas falas?


E a noite vem encontrar-me deserto e abandonado...

Ah, um dia, quando a morte chegar,

hei de erguer para ela os meus olhos molhados,

e hei de contar-lhe a indiferença do mundo

e a amargura dos altos sonhos desfeitos...

— assim como um menino fazendo queixas a sua mãe.